top of page
Foto do escritorCaroline Oliveira

Não temos tempo, mas Que horas ela volta?

Atualizado: 11 de dez. de 2024

Empresários demonizando o home office ou deputados resistindo à redução da jornada de trabalho, o tempo do trabalhador brasileiro nunca foi tão debatido. Como uma produção de quase uma Década nos ensina a lógica que ainda vê o trabalhador como alguém cuja vida e tempo estão à disposição dos interesses da classe dominante, em Que Horas Ela Volta?


Cena do filme Que Horas ela volta?

A herança da escravidão no Brasil, um legado que ainda permeia as relações sociais, reflete-se principalmente nas dinâmicas de poder, onde o controle do tempo do outro é uma das manifestações mais evidentes da desigualdade histórica. De empresários demonizando o home office a deputados contra a diminuição na escala de trabalho, o tempo do trabalhador brasileiro nunca foi tão discutido.

A mudança na percepção sobre o tempo é um dos legados mais importantes da pandemia. Muitos trabalhadores descobriram que, além de ser possível conciliar o trabalho com a vida pessoal, essa nova organização poderia, inclusive, trazer benefícios para a produtividade. A flexibilidade para organizar o próprio dia, os intervalos mais frequentes e o conforto do ambiente familiar permitiram que diversas pessoas tivessem mais autonomia e, consequentemente, mais controle sobre suas jornadas.

Este controle sobre o tempo do outro tem raízes profundas na estrutura escravocrata que perdurou por mais de 300 anos no Brasil. Durante o período da escravidão, os negros eram forçados a trabalhar sem descanso, sem direito a se dedicar aos seus próprios projetos ou ao cuidado pessoal. Embora a abolição tenha ocorrido em 1888, a mentalidade de que certos grupos de pessoas, especialmente os negros e os pobres, estão destinados a servir os interesses da classe dominante ainda persiste. A hierarquia social, onde o tempo de uma classe é monopolizado pela outra, não é uma construção recente, mas um reflexo da forma como as relações de poder se estabeleceram e se perpetuaram ao longo do tempo.

No filme Que Horas Ela Volta?, dirigido por Anna Muylaert, somos apresentados à história de Val, uma empregada doméstica que trabalha para uma família rica no Morumbi, em São Paulo. Ao lado de sua filha Jéssica, que sonha em cursar Arquitetura, Val carrega consigo a esperança de proporcionar uma vida melhor à sua filha, em contraste com as limitações impostas pela classe social. A narrativa delicada do filme reflete de maneira contundente as barreiras invisíveis que dividem a sociedade brasileira, destacando como as relações de classe e subordinação continuam a moldar as vidas dos mais vulneráveis.

O tempo passa de modo diferente entre a Val e os patrões. Embora ela tenha sido tratada com certa afetuosidade, sempre há uma barreira invisível que a separa da família para a qual trabalha. Val é parte do cenário, mas não tem a liberdade de ser parte da vida de seus empregadores. Ela precisa ser discreta, submissa e sempre disponível, sua identidade e seus sonhos são suprimidos pelas demandas constantes de seus patrões. Essa realidade é uma metáfora da maneira como o trabalho no imaginário nacional é deturpado, em que é necessário a abdicação do seu tempo e consequentemente da sua vida.

No final deste ano o debate sobre a escala 6x1 ganhou força nas redes sociais. Uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) da deputada Erika Hilton (PSOL-SP) propõe o fim da escala e a adoção de uma jornada de 36 horas semanais, com a divisão em quatro dias. A escala 6x1 é um modelo de trabalho previsto na legislação brasileira que permite que o trabalhador atue profissionalmente 6 dias na semana, tendo apenas um dia de folga - desde que sejam respeitadas as horas máximas semanais trabalhadas.


Imagem da Deputada Erika Hilton (PSOL-SP)

A discussão começou depois de uma campanha do movimento chamado "Pela Vida Além do Trabalho" (VAT), fundado por Rick Azevedo, que mobilizou trabalhadores contra a chamada "escala 6x1". Esse debate, principalmente as falas dos deputados, relembram as cenas do filme Que Horas Ela Volta?, a sutileza do que há nas entrelinhas, em onde a classe dominante entende o trabalhador como alguém cuja vida e tempo não são seus, mas devem ser entregues para servir aos interesses de quem detém o poder. Assim como Bárbara considera natural que Val esteja à disposição, muitas figuras políticas ainda acreditam que a carga horária extensa e o controle do tempo dos trabalhadores são necessários para o bom funcionamento da economia, sem considerar o impacto disso na saúde mental, no bem-estar ou no desenvolvimento pessoal dos trabalhadores.


Cena do filme Que horas ela volta?

Quase uma década após o lançamento de Que Horas Ela Volta?, ainda ressoa profundamente na sociedade brasileira. A personagem Bárbara, interpretada por Karine Teles, representa um tipo de elite que vê a empregada como uma facilitadora da sua vida, alguém cuja função é se dedicar inteiramente aos desejos e necessidades de seus patrões, sem questionar, sem reclamar, sem exigir nada em troca. Para Bárbara, Val, a empregada, existe apenas para servir. Esse olhar paternalista e desumanizador, que vê o outro como algo à disposição, ainda persiste em muitas das discussões que envolvem a classe trabalhadora e seus direitos, especialmente quando observamos a resistência à PEC da redução da jornada de trabalho.

Esses discursos de resistência à PEC revelam a persistência de uma mentalidade onde o tempo do trabalhador é visto como descartável, como se fosse natural que aqueles que ocupam posições subalternas devam trabalhar mais e ceder ainda mais de si mesmos.

O que Que Horas Ela Volta? nos ensina, quase 10 anos depois, é que as relações de classe no Brasil ainda estão marcadas pela visão de que o trabalhador deve ceder seu tempo, sem questionamentos. A proposta da PEC surge como uma tentativa de reverter essa lógica, ao oferecer mais autonomia ao trabalhador sobre sua própria vida e seu próprio tempo. Ela é um passo importante para desconstruir a mentalidade que coloca o trabalhador como um ser submisso ao trabalho e à exploração, e, ao mesmo tempo, reforça a necessidade de dar aos trabalhadores os mesmos direitos e a mesma dignidade que a classe dominante historicamente se recusa a conceder.



2 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comentários


bottom of page